Em busca de uma liderança irrelevante

Vik Zalewski Baracy

Vik Zalewski Baracy

14 jun. de 2022

|

4 minutos de leitura

Meu coração estremece com as notícias de encobrimento de imoralidade por parte de pastores, celebridades e, em alguns casos, denominações inteiras. Não apenas raiva e tristeza tomam conta de mim, mas também medo. Começo a me questionar: E se fosse eu a agir assim? Não como vítima, mas como aquela que ignora a imoralidade. Será possível que meu coração um dia fique tão cauterizado a ponto de eu ignorar o mal, desejando apenas que a roda continue a girar e minha igreja ou nome não sejam expostos? Será que um dia me importarei mais com minha imagem do que com o Evangelho de Cristo?

Sinto medo, pois sei que isso é possível. Sei que meu coração é mau e, sem a devida manutenção divina, ele pode endurecer e até apodrecer. “Nunca farei isso!”, dizemos nós, até que o prestígio bata na nossa porta nos cobrando algum preço.

Talvez a resposta para isso esteja numa liderança cristã contracultural. Quando escolhi a dedo o livro O perfil do líder cristão do século XXI na biblioteca, não sabia o impacto que causaria em mim, especialmente nesse momento.

Henri Nouwen teve suas obras traduzidas para mais de 35 línguas. Em sua última década de vida, Nouwen, que era padre holandês, abandonou as aulas que ministrava nas universidades de Yale, Harvard e Notre Dame para ser capelão de pessoas com deficiência intelectual na Comunidade Amanhecer (Daybreak), uma comunidade de L'Arche em Toronto. Esse livro conta brevemente as lições adquiridas desse novo momento de vida.

Nouwen relata que, após 25 anos de ministério, sentia que algo não ia bem:

(...) descobri que tinha uma vida pobre de oração, que vivia um tanto isoladamente das outras pessoas (...). Todos diziam que eu realmente estava agindo muito bem, mas alguma coisa dentro de mim me dizia que o meu sucesso colocava minha alma em perigo”. Para ajudá-lo a fugir desse lugar escuro, Deus lhe dera a direção de ir para L’Arche. Como disse o fundador das comunidades: “Vá e viva entre os pobres de espírito, e eles o curarão.

Nouwen sentiu que sua vida começava novamente, pois suas habilidades adquiridas até então pareciam inúteis ali. Os acolhidos pouco se importavam com sua reputação e contatos:

Estas pessoas (...) feridas e completamente despretensiosas me forçaram a abandonar o meu ego relevante, o ego que pode realizar coisas, mostrar coisas, provar coisas e construir coisas.


"Sei que meu coração é mau e, sem a devida manutenção divina, ele pode endurecer e até apodrecer. “Nunca farei isso!”, dizemos nós, até que o prestígio bata na nossa porta nos cobrando algum preço."


A forma de trabalho em equipe da capelania era muito diferente da individualidade da qual estava acostumado. Os acolhidos também falavam o que bem pensavam, sem enfeites ou rodeios, e não podiam ser convencidos com “belas palavras”.

A partir disso, Nouwen reflete sobre o que é ser um líder cristão em nosso tempo. Como disse Jesus:

Quando você era mais jovem, vestia-se e ia para onde queria; mas quando for velho, estenderá as mãos e outra pessoa o vestirá e o levará para onde você não deseja ir (João 21:18)

Para Nouwen, o mundo diz que em nossa juventude não podíamos fazer nossas escolhas, mas quando crescemos nos tornamos independentes. Já quando amadurecemos como cristãos, devemos ter disposição para irmos onde não queremos. Somos líderes-servos, sendo levados a lugares desconfortáveis.

Enquanto o líder do mundo busca ascender e ser relevante, o líder cristão busca o caminho descendente: a cruz. Enquanto o líder do mundo busca habitar os holofotes, o líder cristão deve buscar “habitar na presença daquele que sempre está nos perguntando: ‘Você me ama? Você me ama? Você me ama?’”. O líder do mundo busca crescer sozinho, mas o líder cristão vive em comunidade:

Assim como os futuros líderes devem buscar o sobrenatural (...), eles também devem estar sempre dispostos a confessar a sua fragilidade e a pedir perdão daqueles a quem ministram.

Como nos mostra Henri Nouwen, o caminho relevante do cristão é inverso e contracultural. Enquanto eu - pelo poder do Espírito Santo - imitar aquele não veio ser servido, mas servir, manterei a salvo meu coração das tentações do poder.

Com os olhos em Cristo, fugirei da cauterização do coração.

A Igreja do Futuro e o Futuro da Igreja

Leandro Silva

A Igreja do Futuro e o Futuro da Igreja

R$34,90

Original: Escrito por Viktorya Baracy

Imagem de Unsplash

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Revisão: Maurício Avoletta Júnior

O ponto de vista deste texto é de responsabilidade de seu(s) autor(es) e colaboradores direitos, não refletindo necessariamente a posição da Pilgrim ou de sua equipe de profissionais.


Vik Zalewski Baracy

Vik Zalewski Baracy

Mestranda em Letras e mora em São Bento do Sul, onde cursa Teologia junto com seu marido, Nicksson.


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Guilherme Cordeiro
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(O peso da glória, p. 162, grifo meu). Infelizmente, estamos confundindo as coisas. Em alguns modelos de congregação, como as megaigrejas, a liturgia do culto tem dado lugar à um apelo emocional para gerar experiências sensoriais ao participante, e não como um momento de adoração em um Corpo. Ao invés do autoesquecimento, o preletor e o músico incutem no participante do culto um senso de importância como se todo aquele momento existisse para que ele fosse satisfeito emocionalmente. A busca pelo transe coletivo é confundida com a manifestação do Espírito. O olhar não é mais para Cristo, mas para o homem. E nem sempre isso é feito com palavras antropocêntricas, mas por meio das transações do mercado das emoções. Às vezes, a vitória que se proclama é um incentivo emocional, e não espiritual. A “cura” declarada é um paliativo, uma anestesia que gera bem-estar momentâneo. 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Lewis também relata isso: Numa amizade perfeita, esse amor apreciativo é, penso eu, frequentemente tão elevado e tão fundamentado que cada membro desse círculo se sente, no fundo do coração, humilhado diante dos outros. (...) Ele tem muita sorte de estar na companhia deles, especialmente quando todo o grupo de reúne, cada um contribuindo com o seu melhor, com o que tem de mais sábio ou mais divertido. No entanto, não era apenas a admiração que surgiu. Vê-se que a união foi tão forte e tão profunda, que Gregório relata que parecia que uma só alma habitava os dois corpos. Certamente se sentia humilhado e maravilhado pela grandeza do amigo, mas também sentia que agora o amigo fazia parte dele. Agostinho diz palavras parecidas sobre seu estimado amigo em Tagaste: Disse muito bem quem definiu o amigo como metade da própria alma. Eu tinha de fato a sensação de que nossas duas almas fossem uma em dois corpos. Nesse estágio, perder um amigo era sentir a própria alma dilacerada. 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Marco Antônio Chiodi Jr.
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