Leia, mesmo que esteja apressado

Trevin Wax

Trevin Wax

homem aranha lendo

13 jun. de 2022

|

6 minutos de leitura

Dar conselhos sobre leitura nos faz correr o risco de soarmos pretenciosos, como se tivéssemos uma medalha de honra que nos definisse como leitores sérios ao invés de leitores ordinários. Contudo, vou correr esse risco de soar elitista, porque é comum as pessoas me perguntarem como consigo ler tanto e porque eu mesmo já fui muito beneficiado de artigos como este.

Por isso, eis algumas dicas que me ajudaram a manter um ritmo regular de leitura.

-1. Leia aquilo que te gera interesse

Adam Gopnik diz que “ser um bom leitor não é sinônimo de discriminar certos tipos de leitura”, mas que é ser um leito “onívoro”. “Você nunca sabe o que pode capturar sua atenção.” Não concordo completamente com essa linha de pensamento; você precisa ser, em algum nível, preconceituoso ao escolher suas leituras ou você nunca fará algum progresso em adquirir conhecimento, seja lá qual for sua área de interesse. Contudo, concordo que, na hierarquia das decisões de leitura, esse preconceito – ou discriminação – deve acontecer em um degrau inferior, bem mais abaixo do desejo de dedicar tempo a qualquer livro que capture sua mente e imaginação.

Para ler muito, você precisa gostar de ler e, para gostar de ler, você deve primeiro se interessar por algo. Alan Jacobs está correto ao afirmar que nós não devemos permitir que o sentimento de dever para ler alguns livros substitua o prazer de lê-los. A discriminação possuí um papel aqui, mas a decisão para ler determinados livros – até mesmo livros obrigatórios – deve se situar em um mundo maior de leitura onde você explora aquilo que mais te fascina.

Começo com esse conselho porque, se o assunto do livro não te cativar, o restante dos meus conselhos serão muitíssimo mais complicados de serem aplicados. Sua cabeça funcionará mais no modo do dever – Eu preciso encontrar um tempo para ler – ao invés de funcionar no modo do prazer – Eu mal posso esperar para encontrar um tempo para ler.

-2. Encontre os lugares corretos onde é mais provável que você descubra grandes livros

Eu assino muitas revistas, mas não leio todas elas de capa a capa. Dificilmente encontro alguma revista que possui artigos ou matérias o suficiente que me justifique uma leitura do início ao fim. Minhas assinaturas valem o preço pago por dois motivos muito simples: 1) elas me dão um panorama dos mais importantes lançamentos, me ajudando, assim, a ter um conhecimento básico para o caso de eu decidir ler algum deles; 2) elas me alertam daqueles livros que, definitivamente, não quero ler.

Dois dos meus livros preferidos de 2018, por exemplo, foram descoberto em revistas. Um deles foi a biografia que Bob Spitz escreveu sobre Ronald Reagan. Eu já estava familiarizado com Spitz por causa do seu livro sobre os Beatles, mas essa biografia de Reagan foi de longe uma das leitas mais prazerosas que fiz na época. De maneira semelhante, li inúmeras resenhas da nova biografia de Frederick Douglas escrita por David Blight. As resenhas vinham de todas as perspectivas políticas, o que me fez compreender que a importância desse livro ultrapassava sua predisposição política.

Se você deseja ler bastante, então desenvolva um processo pessoal para o descobrimento de novos livros. Assine revistas e corra atrás de resenhas literárias na internet. Assim você terá uma noção de quais livros você provavelmente irá, de fato, se interessar e quais você talvez precise se inteirar do assunto, mas que pode facilmente fugir da leitura. Assim, de todos os livros que você comprar, é provável que apenas um em cinco será decepcionante. Isso porque você já terá uma bela ideia do que o livro trata antes de compra-lo. Dessa maneira, você minimiza as probabilidades de ficar preso em livros ruins e maçantes.

-3. Leia livros diferentes e das mais diferentes formas


"Quando alguém me diz que não tem tempo para ler, eu não acredito. Na imensa maioria das vezes sou tão ocupado quanto elas, mas, de algum modo, consigo encontrar tempo."


Outro insight de Gopnik e que concordo bastante:

Descobri que ler é uma daquelas habilidades que se aperfeiçoam com o tempo de prática e que não para de se aperfeiçoar com a muita idade, o que é, de fato, algo encorajador.

Quanto mais você lê, mais rápida a sua leitura fica. Quanto mais conhecimento você acumula, mais fácil e mais rápido você assimila o conhecimento de livros semelhantes.

Isso significa que, caso você esteja lendo o quarto ou o quinto livro sobre um mesmo assunto, você conhecerá bem o terreno e isso possibilitará navegar mais rapidamente por ele. Você já saberá o que está procurando e onde encontrar. Você pegará o fio da meada em uma hora ou duas, sem nem precisar ter terminado de ler. Você perceberá rapidamente a contribuição do autor ou do tema específico.

Por exemplo, comecei a ler diversos livros sobre as parábolas de Jesus quando estava na faculdade. Hoje em dia, tenho dúzias de livros sobre esse tema. Quando novos livros surgem, não corro para compra-los, apenas os adiciono à minha lista. Eu tomo um tempo para ver o que os estudiosos estão falando e me mantenho informado dos novos desenvolvimentos no tema. O mesmo se aplica a diferentes áreas do meu interesse. Se penso em retornar para algum campo que não visito há anos, sei exatamente os livros que preciso ler para refrescar minha memória e me preparar para uma nova jornada.

-4. Admita que você tem, sim, tempo para ler

Quando alguém me diz que não tem tempo para ler, eu não acredito. Na imensa maioria das vezes sou tão ocupado quanto elas, mas, de algum modo, consigo encontrar tempo.

Se você quer ler mais e melhor, tenha um livro por perto a todo instante. Enquanto estiver esperando para cortar o cabelo ou esperando alguma consulta você tem uma escolha: ou ficar subindo eternamente a tela do seu celular, assistindo vídeos e lendo brigas no Twitter, ou investir esse tempo lendo um livro. Quando você está na esteira, se exercitando, você pode ler um livro digital. Quando está dirigindo, você pode ouvir um audiobook. Naqueles momentos à tarde em que todos na sua casa estão ocupados e você tem algum tempo sobrando, vá à sua poltrona preferida e leia por pelo menos vinte ou trinta minutos. Antes de dormir, se você ler por pelo menos vinte minutos, você trilhará um ótimo caminho para ler diversos livros ao longo do ano.

Portanto, estabeleça limites para seu tempo assistindo Netflix ou para o tempo que você gasta no celular. Desenvolva esse hábito até que você, naturalmente, prefira ler ao invés de assistir um filme.

Faça essas coisas agora, não quando ficar velho ou seja lá quando você acredita que conseguirá desacelerar. Você se surpreenderá com o tanto que você é capaz de ler em apenas 5 ou 10 anos. Se você está nos seus vinte-e-poucos-anos, não espere. Faça isso agora! E, quanto você chegar aos seus quarenta anos, você ser orgulhará muito disso.

Para ler bem: encontrando a boa vida por meio dos grandes livros

Karen Swallow Prior

Para ler bem: encontrando a boa vida por meio dos grandes livros

R$15,00

Original: Escrito por Trevin Wax © The Gospel Coalition. Website: https://www.thegospelcoalition.org/blogs/trevin-wax/reading-youre-really-busy/

© The Pilgrim. Website: thepilgrim.com.br. Todos os direitos reservados.

Tradução: Maurício Avoletta Júnior

O ponto de vista deste texto é de responsabilidade de seu(s) autor(es) e colaboradores direitos, não refletindo necessariamente a posição da Pilgrim ou de sua equipe de profissionais.


Trevin Wax

Trevin Wax

Marido da Corina, pai do Timothy, da Julia e do David. É diretor publicações da The Gospel Project, na LifeWay Christian Resources.


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Em Suma (Transcrição) - 6. Como ler bem, segundo C.S. Lewis Episódio de hoje: Como ler bem, segundo C.S. Lewis Quem não gosta de C.S. Lewis hoje em dia? A fantasia de Crônicas de Nárnia ou da Trilogia Cósmica, o candor de Quatro amores e Anatomia de uma dor, a sagacidade de Cristianismo puro e simples e Cartas de um diabo a seu aprendiz; a profundidade de abolição do homem e O peso da glória. Quem não admira a sua vida? De ateu convicto a cristão brilhante; das trincheiras francesas da Primeira Guerra aos bombardeios da blitz na Segunda; da sua longa amizade com Tolkien ao seu curto casamento com Joy Davidman; para completar, ele morreu no mesmo dia de John Kennedy e Aldous Huxley. Realmente só a sua vida já dá um livro (e deu, na verdade: Surpreendido pela alegria é a sua autobiografia). Mas não deixe todo esse glamour te impressionar. Lewis pode ser conhecido por apologética e teologia, mas ele nunca foi ordenado, nem se formou em teologia. Pode ser conhecido por sua ficção, mas ele vivia dela. Num dia comum, C.S. Lewis era mais um professor universitário, primeiro em Oxford e depois em Cambridge. E o que ele passava o dia fazendo era pesquisar e ensinar literatura. É, eu acho que ele deve saber ler bem, e ensinar a ler bem. Então, quando vamos falar de como ler bem, estamos com Lewis no seu melhor, na sua especialidade. Na verdade, ele escreveu um livro inteiro sobre leitura e o que distingue uma boa leitura da má: se chama “Um experimento na crítica literária”, e foi um dos últimos que livros que ele publicou em vida. O que Lewis faz nesse livro é redefinir a tarefa convencional do crítico literário (avaliar livros e descobrir os bons) como descobrir quais livros são bons com base em eles ensejarem uma boa leitura. O cerne de uma boa leitura para Lewis é receber o livro, em seu conteúdo e em sua forma, ao invés de simplesmente usá-lo. Como ele diz, “a primeira demanda que qualquer obra de arte faz sobre nós é: renda-se. Olhe. Ouça. Receba. Saia da frente.” É imaginar obedientemente segundo o padrão do autor, em vez de empregar o livro para ajudar nos nossos devaneios pessoais. É claro que vamos precisar “usar” as palavras em certo sentido, precisando ir além delas para imaginar a história ou argumento que elas invocam. Mas o verdadeiro leitor pega esse conteúdo e descansa nele como um fim em si mesmo, ao menos temporariamente. Ele não é apenas mais uma peça no seu mundinho pessoal, uma diversão, um passatempo ou um alívio pessoal. Desse ponto de partida, podemos ver nos escritos de Lewis algumas dicas bem contraintuitivas para leitura, sendo a primeira exatamente esta: Leia por ler. Ou seja, leia para receber o que realmente está ali, em vez de simplesmente para satisfazer uma necessidade pessoal. Lewis observa que as pessoas que sabem ler bem gostam de concentrar toda sua atenção no livro, tanto que as outras pessoas não conseguem entender por que os livros importam tanto. Enquanto outros leem por status (quem não conhece aquele que se gaba todo final de ano quantos livros leu) ou por cultura (quem não conhece aquelas pessoas que se leem só para saber aquilo que “todo mundo anda falando”), o bom leitor lê porque ler já é motivo suficiente. Uma segunda dica é Leia humildemente. Na ficção, o seu objetivo deve ser entrar na imaginação do autor e ver o mundo dele com os olhos dele. Não leia simplesmente para se divertir ou se sentir bem. Na não ficção, você deve suspender a sua discordância e se permitir seguir o argumento do autor, se deixar pensar como ele, para só depois descobrir se concorda ou não. Não leia apenas para confirmar suas opiniões. Como Lewis disse, “nunca vamos saber se uma escrita é ruim a não ser que comecemos a lê-la como se fosse muito boa e acabemos descobrindo que estávamos superestimando o autor, no final”. Em terceiro lugar, Leia prestando atenção nas palavras — até mesmo “oralmente”. Os não literatos, quem não lê bem, querem apenas ler narrativas rápidas e com o mínimo de elaboração formal, porque tudo que eles querem saber são os eventos, “onde a história vai dar”. O leitor literato, por sua vez, presta atenção nas palavras, a ponto de lê-las com os olhos e com os ouvidos também, sentindo a sua forma bem como seu conteúdo. Ele obedientemente deixa sua imaginação seguir o caminho que o autor determinou. E ele só pode saber isso com as palavras. Em quarto lugar, leia mais de uma vez. Em Sobre Histórias, Lewis diz que um livro não valia nada para ele antes que o lesse duas ou três vezes. Justamente porque os eventos, o “conteúdo”, não é tudo que importa, cada nova leitura pode ser uma nova experiência, como uma nova visita a uma paisagem da infância. Em quinto lugar, vá as fontes, ou seja, leia coisas velhas, especialmente se tratar de coisas cristãs. Ele chega a aconselhar em sua introdução ao clássico Sobre a encarnação de Atanásio a você ler um livro antigo a cada novo que você lê, ou pelo menos, a cada três novos que você lê. Ler coisas antigas nos permite ler o que realmente passou o teste do tempo e nos permite sair da perspectiva limitada da nossa cultura. E talvez até ver uma coisa nova ou outra que não podíamos ver nela, mas os antigos viam o tempo todo. Então eu acho que te decepcionei agora. Você começou esse podcast porque talvez queria ler “mais e melhor” ou para gostar mais de ler ou para ter uma leitura mais eficiente. E o que eu te dei foi uma série de dicas bem contraintuititivas, que não parecem tão práticas ou agradáveis assim: seguindo elas, parece que a sua leitura vai ser mais lenta, ter menos resultados práticos e menos relevante para a sua vida. Sem falar que você deveria ler um bom livro mais de uma vez. Que bem pode vir de uma leitura assim? E é justamente aí que a teoria de Lewis toca a sua teologia. O bem específico da literatura é nos permitir sair de nós mesmos, em termos mais técnicos, leitura é um exercício em autotranscendência. Como Lewis colocou, “o homem que se contenta em ser apenas ele mesmo, e assim menos ele mesmo, está preso. Os meus olhos não são suficientes para mim, eu preciso ver com os olhos dos outros [...] Ao ler o melhor da literatura eu me torno mil homens e continuo eu mesmo. Como o céu noturno de um poema grego, eu vejo com uma miríade de olhos, mas ainda sou eu quem vejo. Aqui, como na adoração, no amor, na ação moral e no conhecimento, eu me transcendo; e eu nunca sou mais eu mesmo do que quando o faço”. Isso tem tudo a ver com a teologia e a cosmovisão de Lewis. Lembra o final de Cristianismo puro e simples, de Quatro amores e ensaios como O peso da glória. É algo que você pode encontrar nos principais livros dele, chegando a ser um mito, uma grande narrativa que organiza todos eles. Veja um trecho do primeiro: “É só quando me volto para Cristo, só quando abro mão de mim mesmo para me entregar à sua Pessoa que começo a ter uma personalidade realmente minha. No começo, eu disse que há Personalidades em Deus. Quero ir além dessa afirmação. Não há personalidades reais em nenhum outro lugar. Enquanto você não tiver se entregado a ele, não será um ‘eu’ verdadeiro”. Percebeu a semelhança? Esse princípio de “perder a sua vida para se achá-la” perpassa toda a criação, das nossas emoções pessoais até a literatura, do amor em suas variadas formas até à adoração. Por que a realidade assim? Para Lewis (num insight agostiniano), é porque Deus é assim. Deus, sendo Trindade, se encontra sempre no outro, existe sempre na relação de entrega mútua entre Pai, Filho e Espírito. Como ele coloca, com certo exagero, em O problema do sofrimento: “Na dádiva de nós mesmos, mais do que em qualquer outra coisa, entramos em contato não só com toda a criação, mas com todo o ser. Pois o Verbo Eterno também Se dá a Si mesmo em sacrifício; e isso não apenas no Calvário, pois quando foi crucificado Ele ‘fez debaixo das intempéries de suas províncias remotas o que fizera em seu lar na glória e com alegria’. Desde antes da fundação do mundo, Ele entrega a divindade gerada de volta à divindade geradora, em obediência. E da maneira como o Filho glorifica o Pai, assim também o Pai glorifica o Filho [...] Desde o superior ao mais inferior, o ego existe para ser abdicado e, por essa abdicação, se torna tanto mais um verdadeiro ‘eu’, para ser então ainda mais abdicado, e assim para sempre” Ao criar o mundo do nada, o padrão não poderia ser diferente. O mundo precisa se encontrar nele constantemente para continuar existindo. E é ainda mais verdade para nós seres humanos, tanto é que no momento que centramos tudo em nós mesmos caímos, e morremos. Fomos enganados pelo diabo pensando que podemos ser deuses competindo com Deus e tomando o lugar dele. Maldanado em Cartas de um diabo afirma que “toda a filosofia do Inferno repousa sobre o reconhecimento do axioma de que uma coisa não seja outra e, especialmente, que um ser não seja outro ser. Meu bem é meu bem e seu bem é seu bem. O que um ganha, o outro perde [...] ‘Existir’ significa ‘estar em competição’”. E Deus para nos salvar segue o mesmo padrão. O Filho de Deus se torna filho do homem para que os filhos dos homens se tornem filhos de Deus. O Filho entra no nosso mundo para que entremos no dele. Na cruz, ele se entrega pelos nossos pecados para rachar a nossa prisão de ensimesmamento, num ato de arrependimento perfeito. E o Espírito nos contagia com a vida ressurrecta do Filho para que nos neguemos e nos encontremos nele. É por isso que a boa leitura precisa ser uma leitura receptiva. Deus nos criou assim. Deus nos salvou assim. Deus é assim. Nós seremos eternamente assim. Não tem outro jeito de ser humano sem ser receptivo. Não tem como nos conectarmos com outro ser humano sem amarmos a ele como a nós mesmos. É por isso que precisa ser uma leitura humilde. Humildade segue o fluxo que existe no próprio Deus, que, sendo Deus, vive em comunhão e se encarnou em homem. É por isso precisa ser uma leitura que se entrega completamente ao texto — em suas palavras, em sua forma, em sua antiguidade, em sua alteridade. Afinal, é isso que Deus faz: se entrega. Talvez, enfim, seja por isso que Deus nos deu um Livro: para lermos bem e receber, receber a ele próprio.
Guilherme Cordeiro
Guilherme Cordeiro

Guilherme Cordeiro

10 min
Teologia
Se não há Deus, a culpa deve ser das estrelas Nossa sociedade, já há muito tempo, abraçou a narrativa da morte de Deus, ainda que não tenha feito isso conscientemente. Nossa produção cultural, com o tempo, tem evidenciado o domínio dessa teologia secular em nossa imaginação. Da literatura até filmes pop, tudo tem apontado para isso. Podemos ver, por exemplo, o caso famoso da história dos X-men, que dentro de seu universo ficcional, passam a ser uma prova de que é possível explicar Deus, no sentido de que todas as suas manifestações na história são, na verdade, manifestações humanas de seres aperfeiçoados pelo acaso. Os mutantes são, no final das contas, o atestado da morte de Deus, porque são eles os verdadeiros deuses. As narrativas míticas são apenas explicações de seres humanos limitados que tentam entender algo que, na verdade, não possui lógica nem explicação. É algo que, como diria Heidegger, está aí, largado no mundo. A guinada anti-messiânica que as histórias em quadrinhos de super-heróis tiveram, do fim dos anos 80 para cá, também é algo que merece a atenção. Anti-heróis como Hellboy e Spawn, passam a ser um fenômeno e, alguns deles, como o Batman, se mostram capazes, inclusive, de enfrentar figuras divinas, como é o caso da clássica batalha entre o homem morcego e o Super homem na história de Frank Miller, O Cavaleiro das Trevas. Filmes como O Exterminador do Futuro, Blade Runner e até mesmo casos contemporâneos como Harry Potter tem uma forte influência – acredito que inconsciente – dessa teologia radical, a famosa teologia da morte de Deus. Essas e outras histórias não são ateistas, mas sempre tem como pano de fundo uma sociedade – ou parte dela – que possui respostas o suficiente para não apelar para um Deus transcendente. Alterações genéticas, magia e até mesmo a tecnologia, passam a ser respostas para as dificuldades metafísicas outrora enfrentadas pela humanidade. O caso do best-seller young adult A Culpa é das Estrelas é curiosíssimo e, ainda que seja já um livro que, para a geração atual possa ser considerado antigo, merece uns poucos minutos de atenção. A história acompanha o drama de dois jovens que sofrem com um tipo específico de câncer, se apaixonam e vivem dilemas, não apenas de uma simples paixão adolescente, mas de uma fadada ao fracasso. Ambos sabem que são passíveis de perder suas vidas para essa terrível doença a qualquer momento. Com diz a protagonista, eles são como uma bomba relógio que pode explodir a qualquer minuto. Em certo trecho da história, o casal de protagonistas viaja para Amsterdã e, num jantar, começam um diálogo onde fazem perguntas aleatórias um para o outro e, uma delas, diz respeito a vida após a morte. Augustus Waters, de família cristã evangélica, afirma, sem titubear, que crê numa vida pós-morte; ela, por outro lado, se mostra receosa em afirmar, mas acaba cedendo. Do nada, o Augustus perguntou: — Você acredita em vida após a morte? — Eu acho que a eternidade é um conceito errôneo — respondi. Ele sorriu de um jeito afetado — Você é um conceito errôneo. (…) Agora, sério: e a vida após a morte? — Não — falei, e depois me corrigi. — Bem, para falar a verdade, eu não diria um ‘não’ tão categórico assim, talvez. E você? — Eu acredito — ele disse, confiante. — Acredito, com certeza. Não num paraíso onde você anda de unicórnio, toca harpa e vive numa mansão feita de nuvem. Mas, sim, eu acredito em Algo com A maiúsculo. Sempre acreditei. — Sério? — perguntei. Aquilo me surpreendeu. Eu sempre relacionei a crença no paraíso com, sendo bem sincera, um tipo de limitação intelectual. Mas o Gus não era burro. Hazel Grace ecoa a mesma conclusão que C.S. Lewis teve ao notar que os autores que ele admirava, que iam de Dante e Milton a George McDonald e G. K. Chesterton, eram todos cristãos. Isso o intrigava – assim como intriga Hazel Grace –, pois ele associava a crença em alguma divindade a um sinal de inferioridade intelectual e, com toda a certeza, esse nunca foi o caso dos autores citados. Embora compartilhe da mesma opinião de um Lewis ainda ateu, Grace não compartilha de toda a sua caminhada. O trecho que destaquei acima evidencia algo bastante presente no imaginário popular; creio que podemos chama-lo aqui, para fins didáticos, de niilismo água com açúcar. Hazel Grace representa uma espécie de niilismo que, embora não creia em nada, prefere enganar a si mesmo dizendo crer em algo para, não apenas confortar-se, mas conformar-se a alguma tradição religiosa. Augustus, por outro lado, é a imagem do religioso comum que possui convicção em sua crença, ainda que não aparente nenhum aprofundamento; alguém meramente religioso. Há, no entanto, além do niilismo água com açúcar e do indivíduo meramente religioso, uma personagem que representa o niilismo puro e simples: Peter von Houten. von Houten. Na narrativa, ele é o autor do livro preferido de Hazel Grace, Uma Aflição Imperial. Em determinado momento da história, o casal adolescente consegue se encontrar com o autor e se deparam com um velho alcoólatra e depressivo. O autor de uma história de romance bastante semelhante à deles, era na verdade um homem que abraçou seu luto e não fazia a menor questão de se livrar dele. Ele havia aceitado seu destino e sua condenação existencial rumo a um nada eterno. Tudo isso pode parecer bastante aleatório, mas um olhar um pouco mais atencioso para a obra mostrará que não é. Uma Aflição Imperial sempre foi o livro favorito de Grace, mas Augustus, quando o leu, não foi capaz de aceitar um fim tão abrupto e sem respostas. A narrativa de Uma Aflição Imperial conta a história de uma garota que sofre com alguma doença terminal e acaba sua narrativa sem dar um fim claro para essa garota. Não se sabe se ela morreu ou não, se está feliz ou não. A história, do nada, simplesmente acaba. Quando o casal de adolescentes finalmente conhece o autor do livro, num primeiro momento, Hazel Grace assumi que von Hauten apenas inventou uma história e que não há nada que o represente lá, mas o leitor sabe que isso não é uma verdade. Uma Aflição Imperial é uma tratado da cosmovisão de Peter von Hauten e, ouso dizer, do próprio autor de A Culpa é das Estrelas, John Green, que como ele mesmo relata em um de seus vídeos no YouTube, também passou por algumas crises de fé e hoje, acaba tendo um posição muito semelhante a de sua personagem, Hazel Grace. No final das contas, tanto a história de John Green quanto a de Peter von Hauten, dizem a mesma coisa: quando percebemos que o niilismo é a única resposta para a vida, o melhor a se fazer é, ou aceitar que ela não tem sentido e viver de qualquer jeito, apenas esperando a morte – como faz von Hauten –, ou encontrar algo que lhe dê esperanças para encarar uma vida sem sentido – como faz John Green e Hazel Grace. Em última instância, as duas histórias apresentam uma única conclusão: Deus morreu e devemos escolher como vamos viver o nosso fim. Entretanto, um caso permanece: a religião sem aprofundamento de Augustus e de tantos outras pessoas mundo à fora é suficiente para sustentar as esperanças de alguém? Augustus, o cristão dessa história, aquele que crê em “Algo com A maiúsculo” é, na verdade, a personagem que, num momento de desespero frente ao agravamento de seu câncer, se mostra o que menos tem esperanças e quem o acaba consolando é ninguém menos que Hazel Grace, a niilista água com açúcar que transparece ser esperançosa, mas que aceitou há muito a morte de Deus e que a vida não tem um sentido intrínseco. Tá, mas e agora? Diferentemente do que se pode erroneamente concluir, não pretendo, com este texto, dizer que devemos nos afastar da cultura contemporânea ou impedir que nossas crianças e adolescentes assistam conteúdos do gênero, com o medo de que eles desviem do caminho correto. Meu intuito, na verdade, é encorajar você, cristão, a mergulhar profundamente nas obras que você e as pessoas ao seu redor consomem, para entender, de fato, o que tem atraído a atenção das pessoas. É somente dessa maneira que conseguiremos, de forma bíblica e relevante, responder às questões que tem borbulhado no imaginário popular.
Maurício Avoletta Júnior
Maurício Avoletta Júnior

Maurício Avoletta Júnior

7 min
Literatura
“Disse o anjo”: Os cantos cinco e seis de Paraíso Perdido Eva acorda de seu pesadelo inspirado por Satanás. Atordoada, ela narra o acontecimento a Adão, um sonho que começou com uma voz, dizendo: Eva dormes por quê? (livro V, 38) Eva diz que foi mostrar-lhe a árvore do conhecimento do bem e do mal, que aparentava ser muito atraente, muito mais ao capricho do que ao dia (livro V, 53) Novamente, o contraste entre luz e trevas é trazido à narrativa, mostrando como a escuridão evidencia o mal e as tentações. Além de mostrar a beleza da árvore proibida, Satanás questiona Eva, durante o sonho, a respeito de sua identidade: para ele, ela era uma deusa, que, embora aparentasse estar feliz, só o poderia ser de fato em outro lugar, um lugar em que fosse adorada pelo que é. É assim que começa o canto V de Paraíso Perdido Demonstrando ser aquele que detinha o conhecimento, Adão acalma sua esposa, explicando o mecanismo dos sonhos, e a tranquilizando quanto ao significado deles: o mal à mente de homem ou deus vem e vai, se reprovado, e não deixa labéu ou mancha atrás (livro V, 117-119) Ainda assim, a lembrança do sonho incomoda Eva e marca a primeira interrupção do paraíso, da felicidade intocada do primeiro casal. Percebendo o que havia acontecido e sabendo das movimentações de Satanás no Éden, Deus envia o arcanjo Rafael, a fim de alertar Adão e lembrá-lo da necessidade e possibilidade de resistir e permanecer livre das investidas do inimigo. Adão é sempre o receptáculo das informações: é com ele que Rafael conversa, enquanto Eva colhe frutos para agradar o convidado. O arcanjo revela a Adão o que foi feito por Satanás nos céus: a divisão causada pela rebelião, os anjos que se juntaram a ele na queda e o único que permaneceu fiel - o serafim Abdiel. Rafael quer fazer com que Adão entenda a natureza e magnitude deste mal, capaz de causar uma ruptura no próprio céu e planejando algo ainda pior para a Terra; quer também que Adão se lembre que Deus o equipou com o livre arbítrio e o fez capaz de resistir. Aproveitando a oportunidade, Adão apresenta a Rafael diversas dúvidas a respeito do funcionamento do universo. Algumas delas são sanadas, mas o anjo logo adverte Adão quanto ao desejo excessivo de entender mistérios que pertenciam apenas a Deus. Apesar disto, fica claro que o conhecimento em si não é ruim: Adão e Eva apenas tentaram adquiri-lo experimentando algo que já haviam aprendido que não era bom. Rafael também relata a Adão o momento em que a ira e a inveja de Satanás, que são os motivos de sua rebelião terem acontecido em primeiro lugar, surgem pela primeira vez: quando Deus apresenta seu Filho a todos nos céus. Satanás não aceita que Deus tenha um ser preferido, e incita a revolta dos anjos ao apelar para o ideal da igualdade: Quem pode justamente defender um rei que é por direito sobre os outros seus iguais, se em poder e esplendor menos, em liberdade iguais? (livro V, 794-797) Rafael relembra que Satanás não era um anjo qualquer; ele tinha um lugar privilegiado e de grande importância, mas quis ter mais do que lhe foi dado. É justamente esta a cobiça que ele coloca nos corações de Adão e Eva: vivem no paraíso, mas isto não é o suficiente. Têm conhecimento do que é necessário, mas querem mais. Rafael continua a narrar, no canto VI, a história da revolta causada por Satanás no céu, que desencadeou a primeira batalha no reino celestial. Nos momentos que antecederam a batalha, Satanás não apenas se prepara no sentido bélico, mas teatral: ele se mostra, novamente, como uma paródia do Filho, o objeto de sua inveja: No centro como um deus louvado ia o apóstata na esplêndida quadriga, ídolo de divino rei, cercado por flâmeos querubins e escudos de ouro. (livro VI, 99-102) Os anjos Miguel e Gabriel lutam contra Satanás por dois dias: no começo, a vantagem dos anjos contra o inimigo parece enorme. Satanás foi ferido e, diz o poema, “conheceu a dor”. Contudo, durante a noite, Satanás convoca um concílio com seus anjos e desenvolve armas, que surpreendem seus inimigos no segundo dia de batalha. Esta decisão não foi simplesmente uma forma de lutar de maneira mais efetiva contra os anjos; Milton tinha algo a dizer. Enquanto os anjos lutavam sem armas, Satanás criava a pólvora. A batalha de Satanás contra Deus representa o enclave entre a tecnologia e a natureza, a indústria e a agricultura. Deus, observando o andamento do conflito, entende que Gabriel e Miguel não conseguirão resistir às artimanhas de Satanás por muito tempo. Decide então enviar seu Filho, o Messias: Satanás teria de enfrentar aquele de quem tinha mais inveja, aquele cujo lugar ele queria tomar. O Filho luta bravamente, até que Satanás e seus anjos ficaram encurralados e baixaram as armas. O Messias, todavia, não queria matá-los - ainda não, mas expulsá-los do Céu, deste “lugar feliz, que não tolera à violência atos bélicos” (livro VI, 273-274). Um lugar já havia sido preparado para eles, o inferno já os esperava. Aqui, Rafael leva Adão (e nós, leitores) ao momento inicial da narrativa do poema, à primeira cena do livro I: a queda de Satanás e seus anjos: O inferno ouviu os tons insuportáveis, o inferno viu do Céu ruir o Céu e ao susto fugiria; mas fundira-se fundo demais o fado, demais firme se fundara. Caíram nove dias. Confuso o Caos rugiu, confusa a queda dez vezes mais sentiu p’lo seu caos árido, tal lotação lhe trouxe a dispersão. Fechou o inferno sobre eles por fim o bocejo, mansão justa e em chamas insaciáveis, mansão de dor e choro. (livro VI, 867-877) Adão sente-se maravilhado ao obter conhecimento destes eventos, mas ainda quer saber mais. No livro VII, ele buscará conhecer algo ainda mais profundo: como e por que razão o mundo foi criado.
Julia Guedes
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