Por uma Igreja inclusiva
Gustavo Arnoni
1 jun. de 2022
|7 minutos de leitura
Os braços estavam doloridos, as descidas e subidas eram íngremes, e deveríamos tomar todo o cuidado para não cair no precipício ao lado. Revezamos quem o iria segurar pelos braços e quem ficaria nas pernas. O menino era pesado, mas não o suficiente para nossa amizade. O dia estava bastante quente, por isso, valeria a pena a longa trilha para depois curtirmos a cachoeira. Nós não deixaremos o nosso amigo para trás.
Quatro amigos jovens, um deles, decifiente físico. Éramos da mesma igreja, há muitos anos, e a deficiência nunca foi empecilho para vivermos todos os momentos bons da vida. Nos batizamos juntos, conversamos sobre as primeiras “paqueras”, nos desviamos da fé juntos, retornamos juntos. Sabíamos que o Ricardinho era “diferente” de nós, ao mesmo tempo, era tão igual que a deficiência dele se tornou quase nossa.
Na igreja em que crescemos, não lembro de casos concretos de exclusão. Havia ministérios de surdos, uma síndrome de down muito querida e alguns outros casos. Por fim, o próprio pastor da igreja descobriu uma distrofia muscular que o levou à cadeira de rodas. A igreja se adaptou. O palco mais alto ficou para os músicos. Criaram um mais abaixo, acessível à cadeira de rodas, para que ele pudesse subir e pregar.
A discussão sobre igreja inclusiva tomou um rumo político e nada pode ser uma perda maior para a Igreja. De um lado, o grupo que reivindica inclusão o faz às custas do fundamento da própria igreja: a palavra de Deus. A inclusão se tornou a adaptação aos discursos vigentes. O problema nisso é justamente a Igreja perder seu referencial de reino da redenção. Na redenção, aquilo que está desajustado encontra seu lugar enquanto santificado pela participação. Na adaptação do discurso, não há participação, pois não há visão de desajuste. O deficiente, por exemplo, está desajustado de viver a plenitude que a “normalidade” permite. Por isso, enquanto comunidade redentiva, a igreja propicia a ele a antecipação de todo ajuste final.
A igreja não passa, toda ela, a usar cadeiras de rodas. Pelo contrário, a igreja passa a ser as pernas para aquele que não anda e os ouvidos para aquele que não ouve. A tentação constante da política e dos discursos de identidade é imanentizar a redenção num processo de justificar a realidade tal como se apresenta, ignorando que a harmonia da criação foi comprometida no processo do pecado. E o pecado, herdado e praticado pelos mais ou menos “ajustados”, tende a sugerir que deixar as coisas como estão faz parte do processo da redenção. É a ilusão de identificar algo que está como um deve ser. Não há nada mais contra a inclusão do que isso. É impossível haver inclusão onde existe conformação de que as coisas são como deveriam ser. Qualquer possibilidade de transformação real, própria da redenção, é anulada.
Do outro lado, reagindo a essa tendência inclusivista, está o vanguardismo do medo. Qualquer coisa que sugira que a Igreja deva olhar com atenção especial para os fragilizados é identificado com discurso político progressista. “Os pobres sempre tereis convosco” é entendido como imperativo de Jesus para que se evite interferências nas realidades excluídas da vida. É um tipo de imanentização conservadora. Uns naturalizam as diferenças para a inclusão; outros naturalizam as exclusões para a conservação. A igreja que opta por essa mentalidade fica paralisada em sua ação e entrega os que precisam de voz para o grito daqueles que não crêem que a voz, a palavra e o falar de Deus são o maior poder de redenção para a humanidade.
Como ser uma igreja inclusiva?
- Vivência
Na igreja em que cresci, o maior exemplo de inclusão que tive foi a própria vivência. O fato de existir um ou mais pessoas com necessidades especiais na comunidade prepara todo o coração da comunidade. Atualmente, toda a comunidade que fazemos parte foi impactada pela vida do nosso filho com suas necessidades especiais. Formação, teologia, envolvimento, tudo isso é muito importante, porém não substitui a rica oportunidade que Deus concede de que haja, naquela igreja, uma pessoa especial. Aos poucos, a necessidade da pessoa se torna uma face da igreja. Ela não se vê mais sem ela. Os olhares tortos, os preconceitos, a vitimização, o capacitismo, tudo vai sendo superado. E aqui, cabe uma palavra de advertência também. Às vezes a igreja não sabe lidar com pessoas especiais. Cria-se um sensacionalismo da cura, do pensamento positivo, do “vai ser curado”. Isso paralisa a igreja em lidar com a pessoa real, e frustra o deficiente para se aceitar e amar, como Cristo aceitou e amou. Evidentemente, devemos orar pela cura. Se, porém, Deus não curar, a igreja deve aceitar, lidar e viver com quem Deus ali colocou.
- Fóruns de debates
"É impossível haver inclusão onde existe conformação de que as coisas são como deveriam ser."
A principal tarefa da igreja é a pregação da palavra de Deus. As escrituras e a pessoa de Jesus é a origem e finalidade da igreja. No entanto, a palavra de Deus sempre precisa ser aplicada a contextos e momentos reais. Sendo assim, sempre vemos grupos cristãos discutindo inúmeros temas: política, economia, saúde mental, ação social. Quantas vezes vemos um fórum cristão sobre deficiências físicas e mentais? Pouquíssimas. Na verdade, até o momento, eu não conheço nenhum. A palavra de Deus se aplica também a essas pessoas. Promover esse tipo de formação ajuda, ao menos intelectualmente, a igreja a lidar com essa realidade.
- Ministérios
Entendo completamente as objeções que fazem à ideia de “ministério”. Algumas comunidades usam ministérios como meio de aprisionar a pessoa na igreja ou de infundir ativismo, retirando-a do convívio familiar e do tempo necessário para descanso e lazer. Essas objeções são completamente válidas. Outros podem, ademais, afirmar que a ideia de “ministérios” não é bíblica. Contudo, o serviço é bíblico. A comunicação do evangelho para todas as culturas e condições é bíblico. Nesse sentido, quanto mais uma igreja puder investir tempo e recursos para que o evangelho seja comunicado para pessoas com condições especiais, mais ele irá sinalizar o reino redentor de Cristo na sociedade, e mais ela mesmo desfrutará da multiforme graça e sabedoria de Deus.
- Sacramentos e ordenanças
Reconheço a delicadeza desse ponto. Igrejas que batizam crianças tendem a ressaltar o aspecto inclusivo da criança fazer parte da família de Deus. As chamadas “credobatistas” ressaltam o papel da inteligência na participação do batismo. Eu respeito essas posições, mas não posso deixar de desafiar os pastores de tradição credobatista a reconsiderar o batismo, ainda que de adultos, que possuem dificuldades de expressar a fé de maneira intelectual. É claro que a fé envolve proposições, mas o amor e confiança em Cristo podem ser notados em crianças e pessoas com dificuldades cognitivas. Ainda que se considere o batismo como símbolo, não seria mais proveitoso oferecê-lo aos deficientes intelectuais, incluindo-os simbolicamente no povo de Deus, acolhendo suas famílias e ressignificando sua identidade no mundo?
- Localidade e acessibilidade
Apesar de ser simples, nem sempre isso é considerado na escolha de um salão para a igreja se reunir. Gostamos de pensar em uma igreja próxima a pontos de ônibus ou metrô, para que as pessoas cheguem. Mas, e para as pessoas com dificuldades mínimas de acesso? Recordo-me que, assim que houve o despertar ainda mais inclusivo em minha antiga igreja, investiram em um elevador. Fraldários, elevadores, intérpretes, salas especiais (para acalmar uma criança autista, por exemplo), tudo isso faz parte do investimento para que o evangelho possa ser levado a ainda mais pessoas que carecem da graça de Deus.
- Humildade
Parece bastante desconexo com o restante do texto, mas não é. A pessoa que mais pode falar sobre suas necessidades é a pessoa que passa por ela. A igreja, como receptáculo e transmissora do amor de Jesus, precisa estar disposta e humilde a ouvir os dilemas das pessoas reais. Mudar estruturas, mentalidades e procedimentos só é possível quando nossas toalhas de humildade estão nas mãos para enxugar os pés de nossos irmãos. Só quando a igreja sente a dor do mundo é que ela pode ser transmissora do consolo de Deus.
Original: Escrito por Gustavo Arnoni
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Revisão: Maurício Avoletta Júnior
O ponto de vista deste texto é de responsabilidade de seu(s) autor(es) e colaboradores direitos, não refletindo necessariamente a posição da Pilgrim ou de sua equipe de profissionais.
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