Por uma Igreja inclusiva

Gustavo Arnoni

Gustavo Arnoni

criança com síndrome de down sorrindo enquanto come

1 jun. de 2022

|

7 minutos de leitura

Os braços estavam doloridos, as descidas e subidas eram íngremes, e deveríamos tomar todo o cuidado para não cair no precipício ao lado. Revezamos quem o iria segurar pelos braços e quem ficaria nas pernas. O menino era pesado, mas não o suficiente para nossa amizade. O dia estava bastante quente, por isso, valeria a pena a longa trilha para depois curtirmos a cachoeira. Nós não deixaremos o nosso amigo para trás.

Quatro amigos jovens, um deles, decifiente físico. Éramos da mesma igreja, há muitos anos, e a deficiência nunca foi empecilho para vivermos todos os momentos bons da vida. Nos batizamos juntos, conversamos sobre as primeiras “paqueras”, nos desviamos da fé juntos, retornamos juntos. Sabíamos que o Ricardinho era “diferente” de nós, ao mesmo tempo, era tão igual que a deficiência dele se tornou quase nossa.

Na igreja em que crescemos, não lembro de casos concretos de exclusão. Havia ministérios de surdos, uma síndrome de down muito querida e alguns outros casos. Por fim, o próprio pastor da igreja descobriu uma distrofia muscular que o levou à cadeira de rodas. A igreja se adaptou. O palco mais alto ficou para os músicos. Criaram um mais abaixo, acessível à cadeira de rodas, para que ele pudesse subir e pregar.

A discussão sobre igreja inclusiva tomou um rumo político e nada pode ser uma perda maior para a Igreja. De um lado, o grupo que reivindica inclusão o faz às custas do fundamento da própria igreja: a palavra de Deus. A inclusão se tornou a adaptação aos discursos vigentes. O problema nisso é justamente a Igreja perder seu referencial de reino da redenção. Na redenção, aquilo que está desajustado encontra seu lugar enquanto santificado pela participação. Na adaptação do discurso, não há participação, pois não há visão de desajuste. O deficiente, por exemplo, está desajustado de viver a plenitude que a “normalidade” permite. Por isso, enquanto comunidade redentiva, a igreja propicia a ele a antecipação de todo ajuste final.

A igreja não passa, toda ela, a usar cadeiras de rodas. Pelo contrário, a igreja passa a ser as pernas para aquele que não anda e os ouvidos para aquele que não ouve. A tentação constante da política e dos discursos de identidade é imanentizar a redenção num processo de justificar a realidade tal como se apresenta, ignorando que a harmonia da criação foi comprometida no processo do pecado. E o pecado, herdado e praticado pelos mais ou menos “ajustados”, tende a sugerir que deixar as coisas como estão faz parte do processo da redenção. É a ilusão de identificar algo que está como um deve ser. Não há nada mais contra a inclusão do que isso. É impossível haver inclusão onde existe conformação de que as coisas são como deveriam ser. Qualquer possibilidade de transformação real, própria da redenção, é anulada.

Do outro lado, reagindo a essa tendência inclusivista, está o vanguardismo do medo. Qualquer coisa que sugira que a Igreja deva olhar com atenção especial para os fragilizados é identificado com discurso político progressista. “Os pobres sempre tereis convosco” é entendido como imperativo de Jesus para que se evite interferências nas realidades excluídas da vida. É um tipo de imanentização conservadora. Uns naturalizam as diferenças para a inclusão; outros naturalizam as exclusões para a conservação. A igreja que opta por essa mentalidade fica paralisada em sua ação e entrega os que precisam de voz para o grito daqueles que não crêem que a voz, a palavra e o falar de Deus são o maior poder de redenção para a humanidade.

Como ser uma igreja inclusiva?

  • Vivência

Na igreja em que cresci, o maior exemplo de inclusão que tive foi a própria vivência. O fato de existir um ou mais pessoas com necessidades especiais na comunidade prepara todo o coração da comunidade. Atualmente, toda a comunidade que fazemos parte foi impactada pela vida do nosso filho com suas necessidades especiais. Formação, teologia, envolvimento, tudo isso é muito importante, porém não substitui a rica oportunidade que Deus concede de que haja, naquela igreja, uma pessoa especial. Aos poucos, a necessidade da pessoa se torna uma face da igreja. Ela não se vê mais sem ela. Os olhares tortos, os preconceitos, a vitimização, o capacitismo, tudo vai sendo superado. E aqui, cabe uma palavra de advertência também. Às vezes a igreja não sabe lidar com pessoas especiais. Cria-se um sensacionalismo da cura, do pensamento positivo, do “vai ser curado”. Isso paralisa a igreja em lidar com a pessoa real, e frustra o deficiente para se aceitar e amar, como Cristo aceitou e amou. Evidentemente, devemos orar pela cura. Se, porém, Deus não curar, a igreja deve aceitar, lidar e viver com quem Deus ali colocou.

  • Fóruns de debates

"É impossível haver inclusão onde existe conformação de que as coisas são como deveriam ser."


A principal tarefa da igreja é a pregação da palavra de Deus. As escrituras e a pessoa de Jesus é a origem e finalidade da igreja. No entanto, a palavra de Deus sempre precisa ser aplicada a contextos e momentos reais. Sendo assim, sempre vemos grupos cristãos discutindo inúmeros temas: política, economia, saúde mental, ação social. Quantas vezes vemos um fórum cristão sobre deficiências físicas e mentais? Pouquíssimas. Na verdade, até o momento, eu não conheço nenhum. A palavra de Deus se aplica também a essas pessoas. Promover esse tipo de formação ajuda, ao menos intelectualmente, a igreja a lidar com essa realidade.

  • Ministérios

Entendo completamente as objeções que fazem à ideia de “ministério”. Algumas comunidades usam ministérios como meio de aprisionar a pessoa na igreja ou de infundir ativismo, retirando-a do convívio familiar e do tempo necessário para descanso e lazer. Essas objeções são completamente válidas. Outros podem, ademais, afirmar que a ideia de “ministérios” não é bíblica. Contudo, o serviço é bíblico. A comunicação do evangelho para todas as culturas e condições é bíblico. Nesse sentido, quanto mais uma igreja puder investir tempo e recursos para que o evangelho seja comunicado para pessoas com condições especiais, mais ele irá sinalizar o reino redentor de Cristo na sociedade, e mais ela mesmo desfrutará da multiforme graça e sabedoria de Deus.

  • Sacramentos e ordenanças

Reconheço a delicadeza desse ponto. Igrejas que batizam crianças tendem a ressaltar o aspecto inclusivo da criança fazer parte da família de Deus. As chamadas “credobatistas” ressaltam o papel da inteligência na participação do batismo. Eu respeito essas posições, mas não posso deixar de desafiar os pastores de tradição credobatista a reconsiderar o batismo, ainda que de adultos, que possuem dificuldades de expressar a fé de maneira intelectual. É claro que a fé envolve proposições, mas o amor e confiança em Cristo podem ser notados em crianças e pessoas com dificuldades cognitivas. Ainda que se considere o batismo como símbolo, não seria mais proveitoso oferecê-lo aos deficientes intelectuais, incluindo-os simbolicamente no povo de Deus, acolhendo suas famílias e ressignificando sua identidade no mundo?

  • Localidade e acessibilidade

Apesar de ser simples, nem sempre isso é considerado na escolha de um salão para a igreja se reunir. Gostamos de pensar em uma igreja próxima a pontos de ônibus ou metrô, para que as pessoas cheguem. Mas, e para as pessoas com dificuldades mínimas de acesso? Recordo-me que, assim que houve o despertar ainda mais inclusivo em minha antiga igreja, investiram em um elevador. Fraldários, elevadores, intérpretes, salas especiais (para acalmar uma criança autista, por exemplo), tudo isso faz parte do investimento para que o evangelho possa ser levado a ainda mais pessoas que carecem da graça de Deus.

  • Humildade

Parece bastante desconexo com o restante do texto, mas não é. A pessoa que mais pode falar sobre suas necessidades é a pessoa que passa por ela. A igreja, como receptáculo e transmissora do amor de Jesus, precisa estar disposta e humilde a ouvir os dilemas das pessoas reais. Mudar estruturas, mentalidades e procedimentos só é possível quando nossas toalhas de humildade estão nas mãos para enxugar os pés de nossos irmãos. Só quando a igreja sente a dor do mundo é que ela pode ser transmissora do consolo de Deus.

Igreja sinfônica

Rafael Balestra Cassiano

Igreja sinfônica

R$20,90

Original: Escrito por Gustavo Arnoni

Imagem de Unsplash

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Revisão: Maurício Avoletta Júnior

O ponto de vista deste texto é de responsabilidade de seu(s) autor(es) e colaboradores direitos, não refletindo necessariamente a posição da Pilgrim ou de sua equipe de profissionais.


Gustavo Arnoni

Gustavo Arnoni

Professor, marido da Jaquelina e pai do Enoque, uma criança rara. Formado em teologia, filosofia e pedagogia; especialista em cristianismo e política e em ensino de filosofia.


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Em Suma (Transcrição) - 37. O que a Trindade tem a ver com vida de igreja, segundo Miroslav Volf Hoje no Brasil tem igreja para todo gosto. Não é preciso mais ficar com a velha igreja que seus pais te levavam, de geração em geração. Os mais espirituais podem procurar milagres e orações ungidas; quem é mais nerd pode preferir uma pregação robusta; os mais artistas, hinos e cânticos magníficos; os mais curiosos com história talvez prefiram uma liturgia complexa e profunda, enquanto os jovens solteiros podem procurar uma igreja com pretendentes promissores... Seja como for, essa forma de ser igreja pode não ser muito diferente de como você escolhe o delivery de um restaurante. Mas muita gente pode ficar feliz quando a alternativa anterior era só comer o que sua família tradicionalmente cozinhava. Em termos mais claros, se antigamente no Brasil você praticamente só tinha opção de ser católico romano como seus pais, ou, quando muito, de uma igreja protestante histórica, hoje nem consigo listar o tanto de igreja que você pode escolher. Como podemos sair desse embate entre a uniformidade de igrejas como o catolicismo romano (ou ortodoxia oriental) e o consumismo religioso de muitas igrejas evangélicas, que podem chegar a ser sectárias? A resposta é simples: pela Trindade. Ao menos é essa a resposta do nosso convidado de hoje, o teólogo croata e professor de Yale, Miroslav Volf. Você deve lembrar que já vimos nesse podcast como teólogos como Zizioulas e Ratzinger também usaram a Trindade para justificar a sua estrutura eclesiástica episcopal. Em contrapartida, Volf, seguindo os passos de seu mentor Jurgen Moltmann, defendeu uma concepção trinitária diferente e tentou encontrar uma alternativa congregacional às eclesiologias romanas e bizantinas. Em suas palavras, “estou pegando o grito de protesto das igrejas independentes — ‘nós somos a igreja’ – e o elevando ao status de um programa eclesiológico”. A pauta desse programa perpassa no mínimo três áreas. Primeiro, uma nova proposta sobre os relacionamentos dentro da Trindade serem simétricos. Segundo, como, pela graça do Deus trino, a igreja imita, em certa medida, tais relacionamentos. Terceiro, como isso gera uma modelo participativo/policêntrico para a vida da igreja, que é justamente o que precisaríamos para combater a uniformidade, o sectarismo e o consumismo religioso. Como você já deve saber pelos outros episódios do Em Suma, Miroslav Volf defende um modelo social da Trindade. Isso quer dizer que o que distingue as pessoas não são suas relações de origem e o que as unifica não é sua substância divina e simples. Não, o que as distingue são suas personalidades, serem centros autônomos de consciência pessoal, e o que as unifica é a sua pericorese, ou seja, a habitação mútua das pessoas divinas no interior uma das outras; é a interdependência íntima de seus relacionamentos, como numa dança de amor. Como explica Volf, “a estrutura das relações trinitárias não é caracterizada pela dominação piramidal do um (como em Ratzinger), nem pela bipolaridade hierárquica entre o um e muitos (como em Zizioulas), mas sim pela reciprocidade simétrica e policêntrica dos muitos.” E isso já deixa claro o que a Trindade tem a ver com a vida da igreja. (E, sim, Volf vai tomar o cuidado de afirmar que é só uma analogia que só será perfeita na glória, e mesmo lá não será uma correspondência total entre Criador e criatura.) Isso permite evitar o extremo do autoritarismo das igrejas romanas e bizantinas enfatizar unidade sacerdotal coletiva do episcopado monárquico. Mas também permite evitar o extremo de individualismo de igrejas sectárias, sem qualquer vínculo com outras igrejas e prato cheio para consumismo religioso. A pericorese entre um e três dentro da Trindade gera igrejas locais autenticamente independentes e, simultaneamente, genuinamente católicas! Deixe-me explicar melhor. Pro Volf, uma igreja é constituída quando dois ou três crentes se reúnem em nome de Cristo (Mt 18.20). Mesmo os sacramentos sendo importantes para definir igreja, até eles precisam de fé comprometida do indivíduo para sua eficácia, pois é a fé que nos incorpora tanto na comunhão da Trindade quanto na comunhão eclesial. Como Volf argumenta, “a reciprocidade simétrica das relações das pessoas trinitárias encontra sua correspondência na imagem da igreja em que todos os membros servem uns aos outros com os dons específicos do Espírito em imitação ao Senhor e por meio do poder do Pai. Como as pessoas divinas, elas todas estão em uma relação de mutuamente dar e receber”. Tá bom, mas o que isso quer dizer na prática? Quer dizer que a igreja não se reduz ao clero e todo crente tem igual responsabilidade como membro de igreja local. No modelo episcopal, o poder flui de cima para baixo a partir de bispos e o que unifica a igreja seriam exatamente esses bispos, de modo que os leigos precisam meio que receber deles primeiro para depois contribur com a missão da igreja. Volf encontra uma figura diferente no Novo Testamento. O que unifica a igreja é ela ser carismática,. Calma, ele não tá falando de deixar o menino rodar. E sim o significado original de carisma: os dons do Espírito. Ou seja, como Paulo argumenta em 1Coríntios 12, é uma igreja que depende dos carismas do Espírito. É assim que o Cristo exaltado se faz presente dentre os que confessam seu nome. Todo membro recebe um dom e por isso somos membros uns dos outros. Ou seja, há relações recíprocas e simétricas entre os dons, assim como na Trindade. Todos os membros da igreja são igreja! Então, quaisquer ofícios que houverem dentro da igreja não serão dignidades inerentes para formar um clero que fará todo o real trabalho espiritual, mas sim a recepção pública de um dom dado por Deus e ordenado para igreja como um todo. A ordenação é um ato da igreja toda guiada pelo Espírito de Deus, daí devendo ser precedida por eleição. E, claro, como toda estrutura eclesiástica normativa, é provisória e vinculada a esta era que vai passar (e pode passar ainda mais rápido a depender do sopro do Espírito). Por outro lado, isso não leva a tendências sectárias porque as igrejas locais se relacionarão entre si, assim como as pessoas da Trindade habitam uma na outra. Uma igreja local será católica em suas relações com outros corpos eclesiásticos não porque está atrelada a um patriarca ou a um bispo em Roma, mas porque está “aberta ao diferente”, porque sabe estar unida com quem quer que confesse o nome de Cristo e que precisa de seus dons. Por fim, adotar essa visão para a igreja também acabaria com o consumismo religioso. Enfim haveria um povo refletindo “a descida do Deus trino em paixão autoesvaziadora a fim de levar seres humanos para o ciclo perfeito de trocas em que se entregam uns aos outros e se recebem sempre em amor”. Com esse ciclo de amor e de responsabilidade mútua, a igreja não é um restaurante a se escolher, ou uma comida caseira a se engolir. É onde comemos juntos o pão da vida, distribuído igualmente a todos os irmãos.
Guilherme Cordeiro
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Em Suma (Transcrição) - 26. Não use Mateus 18 para disciplina eclesiástica sem antes ouvir isto Episódio de hoje: Não use Mateus 18 para disciplina eclesiástica sem antes ouvir isto. Hillsong e Brian Houston. Mars Hill e Mark Driscoll. C.J. Mahaney e Sovereign Grace Ministries. Ravi Zacharias e seu ministério. Casos de pedofilia no clero da Igreja Católica. E poderia só aumentar essa lista com outros teólogos acusados de encobrir ou perpetuar casos de abuso sexual e de poder em suas igrejas. Muitas vezes, Mateus 18, aquele famoso texto com três etapas para disciplina eclesiástica, é utilizado para descredibilizar o relato das vítimas que tentam denunciar a liderança da igreja por outros meios. Por outro lado, há uma preocupação comum de que levar relatos às redes sociais e à mídia secular talvez não seja a melhor maneira gerar a solução mais pacífica e justa nesses casos. Hoje, vamos tentar entender o que Mateus 18 realmente ensina, justamente ao entender os versículos v. 15-20 dentro dos outros versículos neste capítulo. Por isso, sugiro que você dê um pause e leia o capítulo todo antes de continuarmos. Pronto? Vamos lá. Anote esses cinco lembretes antes de fazer disciplina eclesiástica com base em Mateus 18. Em primeiro lugar, a disciplina na igreja é feita por e para pequeninos. (Mateus 18.1-5). A primeira coisa que Jesus fala é que o seu padrão de grandeza será as crianças. Não são os reis da terra e os seus filhos privilegiados, mencionados em Mt 17.24-27. É aquela pobre criança de Cafarnaum que ninguém notava. É com ela que Jesus se identifica. Ou seja, a disciplina eclesiástica deve ser feita não para perpetuar politicagens do mundo com seus acobertamentos, mas sim inverter seus padrões, começando por baixo, pela humilhação de quem não é levado em conta e da tentativa de recebê-los como se recebe o próprio Cristo. Em segundo lugar, a disciplina na igreja é feita para evitar pedras de tropeço (Mateus 18.6-9). Como Hauerwas diz, “a excomunhão é um ato de amor porque não é expulsar alguém da igreja, mas uma tentativa de fazê-los perceber que se tornaram pedra de tropeço e, portanto, já estão fora da igreja”. Por outro lado, caso os dominadores que tentam se valer de disciplina eclesiástica como pretexto não tenham notado as indiretas no lembrete anterior, esta parte não deixa dúvida. Ferir a fé de pequeninos crentes deveria dar arrepios por conta das consequências (e todo mundo conhece um desviado por uma disciplina mal aplicada). Como Dale Allison diz, a salvação é concebida como um processo social aqui. Por fim, antes de você se sentir justificado em sua ira anticlerical, a maior pedra de tropeço na sua vida não é uma liderança ou um irmão tolo, mas você mesmo. Arranque o que for necessário para continuar. Em terceiro lugar, a disciplina na igreja é feita para imitar o amor perseverante de Deus. Ou seja, é para ganhar o irmão de volta. Devemos levar esses pequeninos que estão desgarrados tão sério quanto o próprio Deus, reservando a elite angelical mais próxima a ele para tais pequeninos e indo buscar os desgarrados para que nenhum se perca. Como Orígenes falou há tanto tempo, “você vê as ovelhas do Senhor prestes a cair de um precipício e não vai correr até elas? [...] Não queremos seguir o exemplo do mestre pastor?” Aqui está o objetivo da disciplina. Então, mesmo que a pessoa seja retirada da comunidade no final do processo, a expectativa é que ela repense, arrependa-se e retorne. Afinal, ninguém gosta de ser “gentio e publicano” (termos que indicam essa expectativa de retorno). Em quarto lugar, a disciplina na igreja é uma ocasião de sabedoria (Mateus 18.15-20). Não estamos com um código de processo civil ou eclesiástico aqui; este é um dos cinco discursos, em uma possível referência ao Pentateuco, que estruturam o Evangelho de Mateus. Este discurso especificamente busca tratar de relacionamentos mútuos na igreja. Aliás, como nos outros discursos, Jesus faz farto uso da Lei e dos Profetas, e neste caso ele segue o mesmo requisito de duas ou três testemunhas de Dt 19.15 e a necessidade de resolver conflitos comunitários pessoalmente de Lv 19.17. E ele nos mostra como os mandamentos não deveriam ser lidos de forma literalista ou protocolar, mas com uma ocasião de sabedoria, de imaginar aquela situação narrativa da lei como guia para aplicá-la em novos contextos. Afinal, ele está pegando uma situação de Israel no deserto e aplicando a seus discípulos em sua nova comunidade! O que isso quer dizer na prática? Os passos de Mateus 18 não são uma panaceia ou um protocolo para resolver todo tipo de pecado. É para quando um irmão peca no privado contra o outro no contexto da igreja local e a reconciliação não é mais possível. Não está falando de quando um cristão discorda de outro na esfera pública (até porque o próprio Jesus não falava antes no privado com todos seus oponentes teológicos). Não está falando de pecados públicos e notórios (afinal, Paulo não segue esses passos em 1Co 5). Não está falando de caso de erro por parte de líderes (afinal, 1Tm 5 coloca um procedimento diferente). Está falando para inspirar discípulos em busca de sabedoria a resolverem seus conflitos. Em quinto e último lugar, a disciplina na igreja serve para facilitar o perdão e chegar à reconciliação (Mateus 18.21-35). A primeira reação dos discípulos é ver que o que Jesus acabou de falar os exigiria perdoar. E Jesus diz que de fato eles deviam tomar como parâmetro o perdão abundante de Deus. Não é à toa que Jesus começou com a imitação da perseverança do pastor pela ovelha perdida, disse que se faria presente na ação dos discípulos por meio da oração e logo depois fala de incorporar o perdão de Deus. Disciplina eclesiástica deveria ser uma participação no amor divino. Nas palavras de Kangil Kim, o perdão aqui é concebido como o cerne de um ritual corpóreo e comunitário, que passa por arrependimento e oração, para a assembleia participar na natureza perdoadora de Deus. E no final é bom lembrar que é quem não pratica o perdão que não será perdoado por Deus. Mas, para terminar, como reconciliamos essa tensão entre perdão e expulsão da igreja? Parafraseando o comentador Ulrich Luz, Jesus nos chama a orarmos, mesmo sendo apenas dois ou três, e confiar que ele agirá conosco. Às vezes realmente não sabemos como decidir e tudo que podemos fazer é entregar a bagunça de nossos conflitos nas mãos dele, o Supremo Pastor. Referências bibliográficas Ulrich Luz, Matthew: a commentary, ed. Helmut Koester, Hermeneia—a Critical and Historical Commentary on the Bible (Minneapolis, MN: Augsburg, 2001) Citações de pais da igreja vindas de D.H. Williams. Matthew. Eerdmans, 2018. R.T. France. The Gospel of Matthew (The New International Commentary on the New Testament) Stanley Hauerwas. Matthew, Brazos Press, 2007. W.D. Davies e Dale C. Allison Jr. Matthew 8-18: Volume 2 (International Critical Commentary) Kangil Kim. “A Theology of Forgiveness: Theosis in Matthew 18:15–35”. Journal of theological interpretation. Eunyung Lim. “Entering the Kingdom of Heaven Not like the Sons of Earthly Kings (Matthew 17: 24–18:5)”. The Catholic Biblical Quarterly. Para uma abordagem de sabedoria no Evangelho de Mateus, ver as obras de Jonathan Pennington
Guilherme Cordeiro
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Em Suma (Transcrição) - 20. O que a Trindade tem a ver com relacionamentos, segundo John Zizioulas Episódio de hoje: O que a Trindade tem a ver com relacionamentos, segundo John Zizioulas “Quem é você?” Como você responderia essa pergunta? Não teria como fugir de relacionamentos. Se você me contasse o seu nome e sobrenome, já estaria revelando todos os seus relacionamentos familiares. Se me contasse seu trabalho, estaria indicando como você serve a outras pessoas em relacionamentos profissionais. Se me contasse de onde você veio, também me falaria de um relacionamento com uma cidade, vila ou ao menos um lugar nomeado pelo ser humano. Relacionamentos são inescapáveis. E talvez não tenha cultura mais obcecada com relacionamentos e como eles definem a nossa identidade pessoal como a nossa. Basta dar um Google sobre “como descobrir sua identidade” ou mesmo “política de identidades” para ver do que estou falando. E vamos apontar hoje que isso tudo tem uma origem cristã. Como o teólogo ortodoxo grego e bispo de Pérgamo John Zizioulas aponta, essa ideia de relacionamentos pessoais como cruciais para a identidade humana tem uma origem histórica no cristianismo Na verdade, ele só pode sobreviver existencialmente dentro da fé cristã. Por isso, hoje vamos ver como relacionamentos são essenciais para definir Deus, pessoas humanas e, na verdade, até o que é a igreja e sobre como igrejas devem se relacionar entre si. Como sempre, comecemos por Deus. Diferentemente dos filósofos gregos que colocavam divindades e quaisquer outros seres pessoais como um desenvolvimento posterior de um ser impessoal, segundo Zizioulas, os pais da igreja, especialmente os orientais, longe de helenizarem a Bíblia Hebraica, perceberam que a Trindade é o que revela Deus como livre e pessoal. A natureza divina coincide com o Pai, o qual gera o Filho e sopra o Espírito. O ser supremo é relacionamentos de comunhão. Ou seja, o próprio ser de Deus coincide com um ato livre de comunhão, em que o Pai livremente quer estar com o Outro, com as pessoas únicas e concretas do Filho e do Espírito, os quais são únicas e concretas justamente por seu relacionamento singular com o Pai. Daí os pais da igreja a chamarem de “hipóstases”, exatamente para marcar sua singularidade. Ou seja, pessoas são ekstáticas, são um movimento orientado para fora de si para livremente afirmar o outro. Para usar termos mais simples, pessoas são orientadas para amar o outro em comunhão, ter uma liberdade para o outro, como Deus sempre fez na Trindade. E Deus oferece amorosamente à humanidade uma participação dessa comunhão pessoal. Nas palavras de Zizioulas, “Sou amado, logo existo”. Só que seres humanos são finitos e, por isso, não podem ser, por si só, plenamente livres como Deus é. Em nosso mundo marcado pelo pecado e pela morte, somos, por um lado, o que Zizioulas chama de “hipóstase da existência biológica”. Todos nascemos de uma comunhão sexual entre duas pessoas, a qual, em seus melhores momentos, carrega um amor que aponta para o nosso destino como criaturas de encontrar comunhão ao encontrarmos o outro. Ou seja, os componentes básicos dessa hipóstase são o amor eros e o corpo. Mas temos “paixões” que dificultam o destino apontado para ambos, várias necessidades naturais que tiram a plena liberdade e a nossa própria separação individualista das outras pessoas. Nas palavras de Zizioulas, “o corpo tende para a pessoa, mas finalmente leva ao indivíduo”. E, para ele, o indivíduo só pode acabar em morte, na qual finalmente ficará isolado de tudo e todos. E a única maneira de sair desse ciclo de morte biológica é que essa hipóstase nasça de novo, mantendo seu corpo e amor, mas de forma reconstituída. Nas palavras de Zizioulas, “Graças a Cristo, o homem [...] pode afirmar sua existência como pessoal não com base nas leis imutáveis da sua natureza, mas na base de um relacionamento com Deus que se identifica com o que Cristo em liberdade e amor possui como Filho de Deus junto ao Pai”. Daí nasce, por meio do batismo que nos une ao Filho encarnado, uma nova hipóstase, o que ele chama de “hipóstase eclesial”. A igreja é justamente onde renascemos com relacionamentos que não são definidos pela biologia e pelo individualismo exclusivista, onde se reconciliza natureza e pessoa. Basta olhar para a eucaristia, onde todo o cosmos volta para o devido lugar em comunhão com Deus, onde nossos “irmãos” não se restringem a laços familiares, onde os “frutos da terra” são transfigurados no próprio Cristo como pão e vinho, onde a igreja se torna corpo de Cristo e Cristo, cabeça da igreja. E, quando todas essas promessas escatológicas de comunhão com Deus, com o próximo e com a criação na eucaristia finalmente se cumprirem nos novos céus e na nova terra, participaremos juntos do próprio Deus (a querida theosis dos gregos). Viu como a Trindade tem tudo a ver com relacionamentos? Só que eu queria sair um pouco do óbvio, e refletir nesse finalzinho sobre como a Trindade muda os relacionamentos entre igrejas. Ou seja, qual é a visão ecumênica de Zizioulas? Bem, Zizioulas segue o que hoje é um consenso ecumênico de que a igreja representa uma comunhão (koinonia) de pessoas misticamente unida com Deus em Cristo pelo Espiriito Santo. Como vimos acima, ele afirma que essa comunhão existe em sua plenitude onde quer que a Eucaristia seja celebrada. Isso quer dizer que a igreja católica em sua universalidade se manifesta primariamente não em uma grande estrutura burocrática, mas em igrejas locais enquanto igrejas locais, pois é lá que toda a igreja em determinado lugar se reúne com o Cristo todo na eucaristia. Daí, igrejas locais deveriam coexistir não em divisões confessionais formando denominações como temos hoje, mas em estruturas conciliares que facilitem a formação de uma rede de igrejas locais, como foi nos primeiros séculos Porém, preciso aqui voltar para um ponto sobre a Trindade em Zizioulas que impacta sua visão ecumênica. Para ele, existe um relacionamento assimétrico entre as pessoas da Trindade e, por consequência entre o “um” e o “muitos”. Por causa da primazia do Pai, seria a sua pessoa que causaria as outras, embora ele também não possa existir sem eles. Na reflexão da Trindade na igreja, portanto, seria imprescindível que houvesse uma figura episcopal liderando a celebração eucarística — ainda que ela própria esteja atrelada ao resto da congregação — e, por isso, o mais longe que Zizioulas consegue chegar é a uma igreja católica composta em sua unidade por uma comunhão de bispos com suas respectivas dioceses em paridade de jurisdição. E isso pode fazer alguns protestantes ficarem de fora, a meu ver... Seja como for, temos muito a agradecer a Zizioulas por mostrar que a Trindade não só tem a ver com relacionamentos, mas, em suas palavras, como “o homem é livre somente em comunhão”. BIBLIOGRAFIA John Zizioulas. Being in Communion. Roland Millare. “Towards a Common Communion: The Relational Anthropologies of John Zizioulas and Karol Wojtyla” New Blackfriars Kevin J. Sherman “The Doctrine of the Trinity in the Personalist Theology of John Zizioulas” International Journal of Orthodox Theology 13:1, 2022. Lazić, T. (2021). Church as Koinonia: Exploring the Ecumenical Potential of John Zizioulas’s Communio Ecclesiology. In: Latinovic, V., Wooden, A.K. (eds) Stolen Churches or Bridges to Orthodoxy? . Pathways for Ecumenical and Interreligious Dialogue. Palgrave Macmillan, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-030-55442-2_17
Guilherme Cordeiro
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